domingo, 6 de dezembro de 2020

Escravatura no Brasil


Viajam no lenho já crucificados,

mártires das ordens alheias,

olhares cravados de breu,

como se na pele estivesse

cunhada sentença maligna.

 

Oh maldita lei dos Homens

sem fé no humanismo,

com um pé no racismo

e o outro na cega matança do ouro.


E com ouro sobre azul

vai o lenho de volta ao reino;

esfregam-se mãos de contentamento,

as mesmas que, lívidas de morte,

sentenciam a vida de quem os enriquece.


Oh maldita pobreza de espírito

manchada de sangue irmão,

porque não acendeste de pronto

a rubra chama da compaixão (?) ...

 

Decorridos séculos de funesta agilidade

no arrebatamento da atrocidade

vingou A Áurea Lei da Liberdade

pela força de um povo unido

para quem negro e branco

são cores da mesma Luz!


Dezembro 2020          Hugo Ferreira Pires


Nota: A 13 de Maio de 1888 foi decretada no Brasil a Lei Áurea, a qual abolia a escravatura nesse país.




terça-feira, 17 de novembro de 2020

Quinto Império

Na penumbra dos séculos

agarro a imagem das praias do Tejo

olhando a sepultura do que já não é,

abismado com as histórias da História:

gentes virtuosas e crápulas sem pejo.

 

Noutras longínquas praias reveladas

desagua o meu olhar embaciado

pelas viagens do coração,

acordado dos naufrágios perdidos

em marés que já não vejo. 

 

Nesses novos areais se rejuvenesce

a cura quimérica da união

pelas mãos do coração,

pelas vozes das preces,

num coro de línguas que se reconhece

na luz dos séculos vindouros,

onde a luz do amor

dourará a paz em todos os miradouros.


Novembro 2020          Hugo Ferreira Pires




quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Na Voz do Silêncio

É na voz do Silêncio
que emerge a subtil voz
de tudo o que não ouço:
um aparente vazio, fremente, 
que expressa a sua presença
na paciente voz da esperança.

E se algo eu ouço,
é apenas um troço 
da constante experiência de existir,
se existir for um contínuo fio universal
sem início nem fim,
sem tempo nem distância...

Nas vestes do mundo
encontro a guerra e a Luta,
encontro a hipocrisia e a Paz
encontro o egoísmo e o Silêncio...

Mas é na voz da Luta e da Paz
que encontro o Silêncio 
da subtil voz universal:
eterna esperiência de existir.

Outubro 2020          Hugo Ferreira Pires



domingo, 6 de setembro de 2020

Amália Rodrigues

Nos braços da tua voz
se expande Portugal,
navegar profundo na foz
de nossa alma intemporal.
 
Nas vagas do teu sentir
se ergue um povo imenso
como velas a bolir
sobre um mar de incenso.
 
O som do teu coração
conta a saudade de um país
que na eterna imensidão
descobre em nós sua raíz.
 
Soprando a maresia de Além,
tua voz fará sempre viver
a alegria ou a tristeza de alguém
no tempo que há de haver...
 
Agosto 2020          Hugo Ferreira Pires



domingo, 2 de agosto de 2020

Cálice

Que cálice eu trago,
que me dá a cada trago
o amargo travo da luta
no infindável suor da labuta?

Que cruz é esta no caminho
que me cruza o pergaminho
dos sonhos e do querer
como cravos a romper?

Que mar de lágrimas é este
que me soçobra no olhar,
que me turva o caminhar
e me promete a Paz, ao acordar…?

E esta Luz que me encandeia

na escuridão que me permeia,
virá da luta que não cessa
ou do sono que se apressa?

Agosto 2020          Hugo Ferreira Pires



domingo, 26 de julho de 2020

O Meu Chão é de Terra

O meu chão é de terra
e o horizonte enverga um manto
de poeira levantada
na trémula voz do meu canto.

A misteriosa sombra do Poente
acorda os opacos ventos
na anunciada penumbra
de segredos e tormentos.

O nevoeiro da noite
traz da ilusão a fina veste
como cegueira perdida
na luta que minha alma reveste.

Enquanto os ventos vagueiam
sob a prata da lua,
acorda do sono a coragem
na proa de uma falua.

E assim desperta o Nascente
como um sopro salvador
colorindo as vestes de Apolo
com o rubro fogo lutador.

O meu chão é de terra
e o caminho enverga a vontade
de erguer a coragem
nos passos acesos da verdade.

A poeira de hoje será no horizonte
o sedimento da estrada percorrida:
sublimes grãos de experiência
na contínua esteira da vida.

Julho 2020          Hugo Ferreira Pires



quarta-feira, 15 de julho de 2020

Cisnes

Na sublime delicadeza destas águas,
de outros mundos navegantes,
formosos cisnes viajam deslizantes
na onírica música da Neptuno.

Serenos nas intempéries
como um sol estival,
enxugam as lágrimas aladas
tombadas do temporal.

Toda a deceção formal
superam num lampejo,
com a força surreal
no momento do adejo.

Nos lautos sopros de Éolo
sublimam receios e incertezas
com sua alva envergadura
de esperanças e fortalezas.

Julho 2020          Hugo Ferreira Pires


sexta-feira, 12 de junho de 2020

Transformação

Dos insoldáveis céus, pétreos de gelo, 
desce o corpo à terra
pelos espaços aureolados de luz, 
como olhos que vêem e deixam ver 
além do limite que alimenta as árvores 
e que acolhe as águas dos lugares celestes. 

Penetrando no húmus estremece o todo: 
todo o medo, toda a ilusão, toda a arrogâcia, 
toda a cegueira, todo o ódio, todo o pódio, 
tudo quanto destrói, tudo quanto corrói, 
tudo isso treme e abala, desmoronando-se 
no calor da ardente chama do cerne, 
no centro, no núcleo da alma perene... 

Dessa transformação brutal e audaciosa 
nasce um novo ser, refeito de Luz, 
transformado, transfigurado, translúcido, 
voando agora nos luminosos céus, 
leve como o ar, fluído como o éter, 
subtil como a vida, eterno como o espírito...

Maio 2020     Hugo Ferreira Pires


sábado, 9 de maio de 2020

Poema à Lua

Lua cheia de memórias,
mostra-nos o passado recôndito
na clareira da madrugada,
desnuda o que é maldito
e realça à tua passagem
o imponente monte pardo
sobre a verdura da paisagem.

Lua de paixão crescente,
alcança estas serras
com teus braços de luz,
e acorda lentamente
na penumbra do horizonte
os caminhos da alvorada
renascida defronte.

Lua das asas de prata,
acorda as aves sonhadoras
trespassando a densa mata
com teus uivos de Poente,
faz voar ainda mais alto
a vontade que te arrebata
no abismo da vertente.

Lua, Mãe da madrugada,
ilumina o eterno desejo
de perceber nas velhas sombras
a pujança de um adejo,
e exalta a nossa força
tão profunda e arraigada
com a força to teu beijo.

Maio 2020          Hugo Ferreira Pires


terça-feira, 5 de maio de 2020

A Língua Portuguesa

No fundo da alma nasce a voz
moldada no silêncio das memórias,
murmúrio contínuo na foz
onde as ideias criam glórias
e enunciam no voo do albatroz
a fantasia apaixonada
num gesto de poesia,
num som de maresia...

De incontadas línguas mescladas
nasceram horizontes feitos
de inúmeras cores fascinadas
pelos lautos credos eleitos...
Das muitas preces levantadas
e dos mil caminhos refeitos
levanta o vento a voz
de nossos amados avós!

Entre os mundos sonhados
e as intensas palavras ditas
nasceram mares encantados
de tantas histórias escritas,
de bravos poemas inflamados,
sublimando a saudade e o sonho
ao posto mais alto da beleza
pela alma da língua portuguesa.

Maio 2020          Hugo Ferreira Pires



quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Vozes da(s) Vida(s)

Neste mundo coroado de voz sublime,
nas sombras do arvoredo repleto de história,
vive o canto alegre das aves eternas,
o voo da Fénix, o sonho alquímico, o cálice da vida…

Na fresca trama do vento rasga-se da luta a prisão da raiva,
o sopro celeste transmite do Universo os sons divinos,
separam-se o medo, o desespero e as sombras da alma lutadora,
transmutando-se em força e desimpedimento ascendente.

Nas claras águas se espelha a pura alma pujante de vontade
e se afunda o apego ilusório ao aparente poder, à ilusão desmedida;
remotas vagas avançam, crescentes de passados longínquos,
perante a letargia quase involuntária das turvas águas.

Da profunda terra emana a alma mãe, Gaia florescente…
Ventre de húmus inumado de futuro cíclico,
concretização etérica da vontade suprema,
grito de paz forjado de dores, de lutas e desapego.

No puro fogo se renova o luto num esquecimento dormente,
volatilização de outras realidades, d’outros tempos…
E da cinza leve e passageira outro lume se acenderá,
o lume de uma nova vida gravada na alma corajosa, eterna…

Janeiro 2020          Hugo Ferreira Pires