A noite já caiu sobre a
cidade. As luzes fixas dos candeeiros de rua iluminam os seus domínios em
diferentes tonalidades, tentando imitar as estrelas já luzentes no alto do
negro céu. As luzes e os sons trazidos pelos elétricos rasgam esta quietude de
luzes mudas e fixas. Os elétricos parecem falar, ao mesmo tempo que parecem
olhar para o fundo das ruas pardas de alcatrão, certamente adivinhando a
curva e a contracurva que mecanicamente se sucedem. Talvez falem os
elétricos... talvez repitam silenciosamente os pensamentos dos seus
passageiros... Sim, parece-me ter ouvido chinês misturado com português...
inglês entrecortado de malaio... e finalmente um cocktail de espanhol, russo
e crioulo cabo-verdiano...
E os automóveis!? Reparo
agora que eles parecem cantar, resmungar, esganiçar sons, berrar.... uma
sinfonia estranha! E um deles parece mesmo meditar: óóóhhhuuummmmmm.... Sem
dúvida, está certamente a meditar. É bem provável que, tal como os elétricos,
também os automóveis reproduzam o estado de espírito dos seus ocupantes.
Entretanto, uma scooter
atravessa apressadamente a passadeira julgando ter um par de pernas humanas, enquanto
duas bicicletas decidem ser elétricos e passam no sinal verde do elétrico,
embora seja vermelho para todos os outros veículos... Humanos passeiam a pé no
seu ritmo tranquilo, que só a noite impõe.
E eu... eu divago nos
pensamentos enovelados em sentimentos de solidão... Falta-me o abraço
aconchegado, a carícia delicada, o beijo apaixonado (mesmo que furtivo), a mão
dada a outra mão e o olhar cruzado do amor que ainda não existe... Estar só é
um longo caminho de resistência, de descoberta, de tempo disponível para si
mesmo… e um sofrimento também. É um sofrimento meio apagado que se alumia
quando aparece alguém por quem o coração decidiu bater mais forte.
Tudo parece perfeito,
tenho todo o tempo para mim, e no entanto, esse tempo sobra para sentir a dor
da solidão e o gosto salgado do mar de amor ausente brotado dos olhos. O amargo
na boca, o aperto vazio no estômago e a tensão no ventre assumem a solidão,
enquanto a mente viaja sonhando, sozinha, entre as iluminações fixas dos
candeeiros, fintando as movimentadas luzes dos elétricos e voando na direção das
estrelas...